Um dos homens com quem menos troquei palavras na vida me fez chorar. Procurei. Fiz um esforço. Mas não. Não lembro de uma conversa minha dele que tenha durado mais de meia dúzia de palavras. Ele, muito rígido, correto na frente da família, sempre me causava medo. A voz era sempre áustera, ecoava alto na casa, sempre. Odiava o som de bola de futebol e eu sempre tinha uma embaixo do braço ou sob o pé. Eu não brincava quando ele estava perto. Sempre gritava: - Pára de jogar, Rigoberto Filho! Nome e sobrenome na mesma sentença você tem que obedecer.
Ele roubou a mulher da casa dos pais. Fugiram. Tiveram filhos e problemas. N'um tempo que eu sempre desconfio que fosse mais fácil. Os dias tinham suas caras. Sábado com cara de sábado. Domingo com cara de domingo. Pai com cara de pai. Mãe com cara de zelo.
Esse homem me fez chorar. Ele tem 82 anos. é pai de meu pai. Passou pelo quarto derrame (nem sei se assim que ainda chamam). Passou 4 dias no hospital. Voltou p'ra casa anteontem. Já tem alguns anos que ele volta a ser criança. Reclama da comida, fala coisas sem sentido, reclama da roupa igual a uma criança.
Voltou p'ra casa com os olhos cheios de generosidade. Com metade do corpo insensível, imóvel, morto, sem a possibilidade de fala, sem voz. Mas olhos tinham alguma coisa de muito feliz. Ele tinha olhos de manhã de domingo. Enquanto eu o colocava sentado na cama dele o braço ainda vivo se rodeava de minha avó e a puxava para um beijo, dois beijos, três beijos. Tinha alguma coisa de muito feliz naquele homem que tinha acabado de perder metade dos, já, poucos movimentos que tinha. A metade que funcionava tinha pressa de agarrar a mulher com quem ele vive a quase 60 anos. Os olhos mareavam, se enchiam de água. Os meus não, mas tinha um nó dentro de mim, mal feito, incomodando na altura da garganta. Eram 82 anos. Eram 5 filhos no casamento e um fora (uma tia que nunca conheci). Eram 11 netos. Eram 3 bisnetos. Engoli à seco. Sorri amarelo. Nunca precisei de uma conversa com meu avô e justamente quando ele não consegue mais falar e tem metade do corpo morto me mostra que é a parte viva que interessa.
O braço rodeando vovó. Os beijos desengonçados. O sorriso torto. Os olhos cheios de água. Os filhos ao redor. Eu de neto, olhando.
Fui pra cozinha. Da cozinha pro quintal. Lá deu p'ra chorar um pouquinho.
rigoberto.lima
sexta-feira, setembro 17, 2010
Metade vivo
Postado por rigoberto.lima às 6:25 PM |
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